A década de 2010 ficou marcada pelo desenvolvimento duma forma particular de Inteligência. A tecnologia digital tornou-se ela própria, inteligente: telemóveis, televisões, relógios, carros e todo o tipo de eletrodomésticos entraram na era smart. A inteligência artificial deixou de ser ficção para se tornar realidade e tudo se tornou personalizável e adaptável à medida do utilizador.
O mundo, as pessoas e as empresas vivem do networking e faltar o acesso à internet passou a ser o equivalente a faltar algo de básico e de essencial no nosso quotidiano. A medicina, tal como vinha a acontecer desde há muito, é uma das maiores beneficiadas pela evolução tecnológica e passou a ser um palco privilegiado e decisivo para a aplicação da Inteligência Artificial. Um benefício que se traduz em novos meios de diagnóstico, novos métodos de tratamento e novas soluções para problemas novos e antigos. Contas feitas, a tecnologia contribui decisivamente para o aumento da vida, da sobrevida e para a melhoria da qualidade de vida dos seres humanos, sendo uma aliada importante para os médicos.
Aos acontecimentos pitorescos das últimas décadas, juntaram-se outros eventos, de carácter mais moderno e digital. No entanto, o lado humano da vida ganhou novos contornos, tendo como exemplo as vitórias alcançadas a todos os níveis.
A última década foi uma década de vitórias históricas para Portugal. A 10 de Julho de 2016, aos 109 minutos de um jogo de futebol que teimava em não passar do empate, Éder marcou o golo mais importante da história do futebol português. Um pouco por todo o mundo, gritou-se golo de pulmões bem abertos, com a alma aos pulos e a sensação de vitória a inundar o coração de todos os Portugueses: Portugal vencia o Campeonato Europeu de Futebol pela primeira vez na história derrotando em França a equipa anfitriã.
A 13 de Maio do ano de 2017 o país parava novamente, com o Papa Francisco a despedir-se de Fátima, Salvador Sobral fazia história em Kiev, ao vencer o festival da Eurovisão com uma pontuação recorde de 758 pontos. Amar pelos Dois, cantado de mansinho e sem grandes alaridos conquistava o primeiro lugar do pódio. A música de Salvador e Luísa Sobral foi ouvida quase 10 milhões de vezes só na plataforma de streaming Spotify. Com um estilo e vozes incomparáveis, emergiu como um herói nacional tendo sido recebido por centenas de pessoas à chegada ao Aeroporto de Lisboa. Aquilo que movia as pessoas continuou a ser, como na década anterior, as causas. E destas, o reconhecimento da diversidade. Em 2010, sob a presidência de Aníbal Cavaco Silva foi aprovada a lei que regulamenta o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Esta foi, aliás, uma década repleta de acontecimentos políticos. Em 2014, a 23 de novembro, os portugueses começavam a acreditar na efetividade do sistema judicial português quando assistiram à detenção do ex-primeiro ministro José Sócrates à chegada ao Aeroporto de Lisboa sob a acusação de envolvimento em crimes de corrupção, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais. Neste mesmo ano, explodia o escândalo do Banco Espírito Santo, presidido por Ricardo Salgado. Em 2016 Marcelo Rebelo de Sousa chegava à Presidência da República pronto para inaugurar o conceito da politica de afetos e estendê-la a toda uma nação. Lá fora, a política teve momentos marcantes como a eleição de Dilma Rousseff, a primeira mulher a ocupar o cargo de presidente no Brasil, em 2011.
Em 2014 seria reeleita, mas não “sobreviveu” ao processo de destituição que aconteceu em 2016. Nesse mesmo ano, o Mundo assistia, com espanto, à eleição de Donald Trump para o cargo de Presidente dos Estados Unidos. Jair Bolsonaro foi eleito Presidente do Brasil em 2018. Foi uma década em que também morreram grandes vultos da política internacional. Hugo Chavez, o controverso presidente venezuelano, morreu em 2013 e Fidel Castro, amado e odiado por tantos, morreu em 2016. Em Portugal, a literatura perdeu um nome maior com a morte do nobel José Saramago, em 2010, e Eusébio em 2014 passou a repousar no Panteão Nacional. Em 2011, Steve Jobs perdeu a luta contra um cancro pancreático com apenas 56 anos de idade. Marcado por histórias de príncipes e princesas, o Reino Unido continuou a oferecer ao mundo histórias (quase) encantadas. A 29 de Abril de 2011, num conto de fadas dos tempos modernos, Kate Middleton e o Príncipe William (filho da malograda Princesa Diana) casaram ante o olhar de vários milhões de britânicos e de mais de dois mil milhões que assistiram à cerimónia pela televisão. Uma cerimónia que obedeceu a todas as tradições reais, mas com vários momentos disruptivos a começar pela des- cendência plebeia da noiva. O casamento foi pago por ambas as famílias, os noivos abdicaram da tradicional lista de casamento em prol de doações para 26 organizações de caridade espalhadas por todo o Mundo e a aliança da noiva foi feita a partir de um pedaço de ouro galês que pertencia ao noivo. Entre extravagâncias e provas de humildade, este casamento deixou os ingleses e o mundo rendidos à cerimónia e ao vestido da noiva com a assinatura do famoso criador Alexander McQueen. A 19 de Maio de 2018 foi a vez do filho mais novo da Princesa Diana, Harry, com uma famosa atriz americana, Meghan Markle. A cerimónia, menos sumptuosa que a do irmão mais velho, mas mais recheada de polémicas aconteceu com os mesmos detalhes, com mais modernidade. Foi o noivo a colher as flores do bouquet da noiva, mas teve de pedir autorização à avó para poder ir com a barba por fazer.
A noiva com origens afroamericanas casou com um vestido representativo dos 53 países da Commonwealth. No final de 2019, mantendo apolémica que sempre os envolveu decidiram “divorciar-se” da família real abdicando dos títulos reais. Esta também foi a década em que o Reino Unido, profundamente desunido, decidiu sair da União Europeia. Um processo de avanços e recuos marcado pela indecisão dos britânicos entre o sim e o não ao Brexit, uma crise política sem precedentes e finalmente uma decisão de saída sem precedentes e repleta de consequências parte a parte. Em 2019, o polémico Boris Johnson foi eleito primeiro-ministro com plenos poderes para avançar com a saída do país da União Europeia.
A década ficou, também, marcada por alterações profundas a nível global. A superação da crise financeira europeia que migrou da década anterior, a guerra da Síria e o desespero de milhões de refugiados marcaram estes anos. No ano de 2010, assistiu-se ao salvamento de 33 mineiros que ficaram soterrados no fundo de uma mina no Chile. Foram necessárias 10 semanas para conseguir resgatar todos os 33 homens com vida. No mesmo ano e no espetro oposto da esperança, um violento terramoto de 7 na escala de Richter atingiu o Haiti, destruiu 80 por cento da capital, Port-au-Prince, deixando debaixo de escombros mais de 220 mil mortos. Em 2015, um novo terramoto, de 7.8, atingiu o Nepal destruindo vários locais que eram considerados Património da Humanidade e deixando mais de 10 mil mortos. No entanto, o pior desastre natural da década ocorreu no Japão, em 2011, quando um terramoto de 9.1 na escala de Richter destruiu grande parte da zona costeira do Japão. Este foi o terramoto mais forte alguma vez registado no Japão. Morreram 15 mil pessoas e o abalo causou danos nas estruturas da central nuclear de Fukushima, causando o segundo acidente nuclear mais grave da história.
Em Portugal uma tragédia sem precedentes causou a morte a 66 pessoas em circunstâncias terríveis. A 17 de Junho de 2017, na Estrada Nacional 236, que liga Figueiró dos Vinhos a Castanheira de Pêra, em apenas 500 metros, 47 pessoas ficaram encurraladas pelo fogo. As imagens daquela que ficou conhecida como a “Estrada da Morte” perduram na memória de todos os portugueses tal como a onda de solidariedade que se seguiu. O incêndio durou cerca de uma semana deixando um rasto de destruição no Município de Pedrogão Grande afetando milhares de pessoas que ficaram desalojadas e empresas que ficaram reduzidas a cinzas. No final da década, em 2019, um outro incêndio deixou imagens impressionantes. A 15 de Abril de 2019, deflagrou um incêndio na Catedral de Notre Dame, em Paris, destruindo a nave central e o pináculo gótico do monumento. As obras de recuperação foram avaliadas em 100 milhões de euros. O ano de 2010, marcou o início de uma nova era na medicina com a inauguração da Fundação Champalimaud. Um centro de investigação para o desconhecido que tem tido uma forte presença na inovação e investigação em medicina em Portugal. Em 2015, a comparticipação
a 100 por cento do medicamento para a Hepatite C trouxe um grande avanço no combate a esta doença em Portugal.
A boa saúde da gastro portuguesa
“Há uma irreverência muito própria dos gastrenterologistas”, refere Guilherme Macedo a propósito da grande visibilidade que a gastrenterologia portuguesa tem granjeado fora do país. Apesar de terem começado com algum atraso aquando do início do desenvolvimento da especialidade a nível global, os especialistas portugueses rapidamente alcançaram a dianteira no desenvolvimento desta área da medicina. “A gastrenterologia portuguesa tem uma enorme credibilidade no palco internacional. É reconhecida pelos seus créditos de desenvolvimento da qualidade e segurança nos seus atos”, defende Guilherme Macedo. Essa credibilidade global reflete-se por exemplo no facto de a World Gastroenterology Organisation (WGO) ter, em junho de 2015, inaugurado um Centro de Treino de Gastrenterologia e Hepatologia no Porto.
Estes centros de treino da WGO são faróis orientadores que guiam a ação da WGO a nível tão diverso e heterogéneo como é o mundo atual. Existem 23 destes centros em todo o mundo e cada um é adaptado ao Facebook adquiriu o Instagram contexto e circunstâncias da região onde insere, mas sempre com garantia de rigor, segurança e qualidade tendo um currículo próprio e um
desenvolvimento formativo adaptado. O Centro de Treino do Porto tem um cunho assistencial, investigacional e académico associado à Europa tendo uma característica de universalidade única uma vez que abre portas a todos os países lusófonos, nomeadamente aos países africanos de língua portuguesa e ao Brasil.
Guilherme Macedo foi um dos responsável pela implementação desta Unidade e afirma: “Um centro de treino da WGO tem essa dimensão internacional e cosmopolita e o do Porto tem sido muito agraciado pelo trabalho desenvolvido”.
Este centro contribuiu para dar mais visibilidade ao papel que Portugal tem vindo a desempenhar ao longo dos anos. Conta Rui Tato Marinho que o desenvolvimento internacional da gastrenterologia portuguesa começou há alguns anos, fundamentado em ligações fortes ao estrangeiro e contactos internacionais que há muito que vêm sendo desenvolvidos e que permitem relações estreitas entre pares de sociedades científicas à escala mundial. A esta ligação não são alheias as elevadas classificações de quem escolhe a gastrenterologia como área de especialização. “Ao entrarem os mais bem classificados consegue explicar-se a qualidade das pessoas que estão na especialidade. Por isso é uma especialidade com tanto sucesso”, refere o atual Presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia.
A essas capacidades associam-se caraterísticas socioculturais que são inatas aos portugueses como a vontade de ver o que se faz fora
de portas para fazer ainda melhor dentro de portas. Os estágios internacionais são muito fomentados por quem ensina, porque quem ensina já passou por eles. Conta Guilherme Macedo sobre os dois estágios que fez no estrangeiro nos anos 90: “Esses estágios foram capazes de nutrir, de iluminar o caminho, de mostrar o que era possível fazer e o que se fazia de melhor nesses países. Criaram uma pressão adicional que beliscaram e instigaram a criar cá aquilo que se fazia por lá. Isto não nos coloca numa posição de subalternidade: coloca-nos com a premência da necessidade de trazer riqueza e diversidade, de nos proporcionar outras perspetivas que nos fazem crescer ainda mais”.
O que se percebe de há uns anos a esta data é que o mundo da gastrenterologia está atento ao que é desenvolvido em Portugal e à investigação que acontece dentro de fronteiras. O mérito alcançado pelos especialistas portugueses evidencia-se, cada vez mais, nos encontros internacionais de gastrenterologia onde se partilha o trabalho científico que vai sendo publicado. A dinâmica da gastrenterologia portuguesa torna-se evidente nos palcos internacionais onde atua.
O mérito, reconhecido aos trabalhos apresentados, é um acrescento de responsabilidade que os gastrenterologistas portugueses encaram como desafio. “Somos um país muito pequeno, com uma comunidade de gastrenterologistas muito pequena quando comparada com outros países muito desenvolvidos e é fulcral que tenhamos a noção da dimensão do nosso papel, mas também do relevo que podemos ter por induzir mudança a nível global.
Temos competências culturais capazes de catalisar mudança no mundo. Só assim se compreende que vários portugueses tenham tido um relevo tão grande no mundo civil e político: veja-se o exemplo de Durão Barroso e António Guterres” refere Guilherme Macedo. A reconhecida qualidade vem também, de acordo com Miguel Bispo, da grande qualidade da formação dada a nível nacional. “A formação em Medicina em Portugal é muito exigente, mas isso é recompensado do ponto de vista das capacidades assistenciais e da atividade científica. Os Gastrenterologistas portugueses estão entre os que mais publicam”, refere Miguel Bispo evidenciando a existência de uma elevada atividade científica no país.
Uma das evidências do desenvolvimento da gastrenterologia foi a criação da Semana Digestiva, em 2011. Começou a fazer sentido agregar todas as sociedades médicas num único evento. Refere Leopoldo Matos que a Semana Digestiva surgiu como uma forma de conciliação de todas as sociedades ligadas à área da Gastrenterologia. A ideia era juntar todas as áreas para se evitar a dispersão de conhecimentos e recursos. Agregar-se foi um compromisso das sociedades. Era importante dar robustez à gastrenterologia”, refere Leopoldo Matos. Foi desta forma que se alterou a estrutura das reuniões nacionais e os congressos evoluíram para a Semana Digestiva. Alargou-se a duração, alargou-se o âmbito, alargou-se o sucesso.
“Começou a oferecer-se mais devido à revolução tecnológica, reviram-se os programas, que se tornaram mais diversificados. A tecnologia nestes anos tornou-se avassaladora e surgiram novos conceitos no âmbito da investigação que resultaram numa tentativa de chamar ao nosso congresso outras sociedades”, recorda Carlos Sofia. Guilherme Macedo reforça essa opinião defendendo a importância da exposição, da investigação e do networking. “A tecnologia das reuniões à distância nunca poderá substituir as reuniões onde as pessoas se encontram e discutem várias questões sem constrangimentos de rede ou de horários. Tem de haver capacidade de interação e isso só é possível se as pessoas estiverem a coabitar por alguns dias num determinado espaço de ciência, tecnologia, conhecimento e socialização, como acontece na Semana Digestiva”, afirma Guilherme Macedo.
Rastrear para prevenir
Os últimos dez anos foram muito relevantes para a gastrenterologia. Um aumento significativo na esperança média de vida aliado à inovação tecnológica tem contribuído para um grande desenvolvimento não só ao nível das técnicas, como dos medicamentos, mas também da diversidade de doenças. Nos últimos 60 anos, a esperança média de vida aumentou quase 20 anos. Com este aumento de idade começaram a surgir mais doenças, muitas diretamente relacionadas com o envelhecimento da população.
Inauguração do Centro de Treino WGO no Porto A grande credibilidade da gastrenterologia portuguesa levou à criação deste centro
A atividade especializada dos gastrenterologistas contribuiu de uma forma decisiva para esse aumento do tempo e da qualidade de vida, uma vez que muita da atividade do gastrenterologista se centra no diagnóstico, rastreio, tratamento e cura de muitas doenças graves e com elevadas taxas de mortalidade. Durante as últimas seis décadas, a endoscopia digestiva tornou-se numa rotina, capaz de observar praticamente toda a extensão dos 8 metros do aparelho digestivo, vias biliares e pâncreas, recorrendo à endoscopia, ecoendoscopia, enteroscopia, colonoscopia e cápsula endoscópica.
O que estas técnicas trouxeram foi, sobretudo, mais acessibilidade e
visibilidade. A Gastrenterologia vai cada vez mais longe e mais profundamente no corpo humano. Uma forma mais eficaz de prevenção passa por um aumento na capacidade de deteção precoce de situações patológicas em processos vulgarmente designados por rastreios. “Nos anos 90 a mortalidade por cancro do cólon duplicou em 10 anos e começaram a fazer-se campanhas de rastreio. É uma situação assumida pela gastrenterologia no seu todo como forma de intervenção social com interesse em promover a qualidade de vida, aumentando-a com a diminuição da mortalidade por cancro”, refere Leopoldo Matos. Porque quando se fala de rastreio, é, sobretudo, de cancro que fala.
A investigação levou a avanços importantes no que diz respeito a um maior conhecimento relativamente aos fatores de risco. A prevenção que passa por manter um estilo de vida saudável, passa também, necessariamente, pelo rastreio. A diminuição do tabagismo e do consumo de alimentos fumados, carnes processadas ou enchidos permite evitar muitas das patologias oncológicas digestivas mais comuns. “O cancro é uma doença enigmática e diabólica, nas há cada vez mais cancros curáveis. Há cada vez mais cura porque há mais investimento em programas de deteção precoce. A ideia da prevenção é muito nobre e as sociedades têm de implementar a prevenção”, afirma Diniz de Freitas. A prevenção de doenças oncológicas é uma das maiores preocupações da medicina moderna e é uma das preocupações das sociedades científicas, dos
hospitais, da medicina geral e familiar e de todas as pessoas com consciência social. No entanto, há várias questões relevantes quando se fala do rastreio e dos programas de rasteio. “Há muitos planos, a questão é saber se no terreno há efetividade. Há opções politico-financeiras que subjazem a estas opções e é por isso que a Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia tem um papel fundamental como interlocutor privilegiado de informação aos decisores políticos. Temos de dar conhecimento e base científica que suportem decisões efetivas. O gesto preventivo proativo consome recursos, mas esse custo, que é imputável à sociedade civil numa determinada época, pode ter ganhos tremendos poucos anos depois, mesmo que as pessoas e os políticos não os antecipem”, afirma Guilherme Macedo.
Apesar de terem começado com algum atraso aquando do desenvolvimento da gastrenterologia a nível global, os especialistas portugueses rapidamente alcançaram a dianteira no desenvolvimento desta área da medicina
Por ano são realizadas cerca de 300 mil colonoscopias. A realização desde exame e de tudo aquilo que ele implica tem um custo elevado. Rui Tato Marinho defende o papel da gastrenterologia no alívio do sofrimento humano e que essa capacidade de rastreio contribui para salvar muitas vidas recorrendo a tecnologias de ponta. Refere o Presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia que a nossa especialidade, conquistou argumentos para se fazer valer como um stakeholder importante na sociedade sobretudo porque há um peso muito grande de cancros ao nível do sistema digestivo.
“Para o grande público tem de se apostar na prevenção e na chamada de atenção para os sinais e sintomas que permitem diagnosticar precocemente doenças malignas. Quando se fala de
saúde digestiva foge-se da palavra doença porque a nossa missão é proteger a saúde, mas devemos alertar as pessoas para comportamentos saudáveis ao nível da alimentação e dos riscos dos vícios como o tabaco e o consumo de álcool” refere Pedro Moutinho Ribeiro que acrescenta que apesar do muito que se fala em rastreio a taxa de penetração do rastreio é apenas de 50 por cento: “Há uma grande margem de manobra para ir buscar os outros 50 por cento de pessoas menos avisadas, motivadas ou estimuladas contribuindo para uma redução drástica da taxa de incidência de cancro do cólon. O rastreio endoscópico do cancro do colon permite a efetiva prevenção e cura e é por isso que, globalmente, a partir dos 50 anos todas as pessoas devem fazer colonoscopia, com ou sem sintomas”.
O mundo em mudança
A história da igreja católica adquiriu contornos notáveis em 2013. O Papa Bento XVI deu por terminado o seu pontificado com a primeira renúncia papal em mais de seiscentos anos. Foram necessários dois dias e cinco votações até se avistar fumo branco no Vaticano. A escolha de Jorge Bergoglio foi uma surpresa não só por ser o primeiro latino-americano a ser eleito, mas também por ser jesuíta. O cardeal argentino escolheu o nome Francisco em homenagem a São Francisco de Assis, que abandonou a riqueza para viver como pobre.
Desde a sua eleição que o Papa Francisco se propôs a revolucionar os dogmas da Igreja Católica imprimindo-lhe modernidade. Abdicou dos dourados sumptuosos e das extravagâncias em prol de uma atitude despojada. Saiu das trincheiras douradas para combater os abusos sexuais no seio da Igreja, deu transparência às Finanças do Vaticano e desafiou hierarquias conquistando a estima de uns e o ódio de outros. A causa de Francisco foi assumida no momento que assomou à varanda para saudar os fiéis que aguardavam na Praça de São Pedro. O argentino levou a provocação da simplicidade, da frugalidade e do sorriso fácil para dentro do
Vaticano. Em Portugal, uma outra eleição encheu as manchetes de todos os jornais. A 12 de Dezembro de 2016, António Guterres era eleito secretário-Geral da ONU evidenciando o corolário de uma carreira na política sem precedentes. Esta foi uma década em que o terrorismo não deu tréguas. Em 2011, um militante da extrema-direita, Anders Behring Breivik, matou 77 pessoas e feriu 51 num ataque terrorista sem precedentes na Noruega. No mesmo ano, em 2011, o governo americano de Barack Obama põe em marcha a Operação Lança Neptuno. As forças especiais americanas capturaram e mataram Osama Bin Laden, num complexo da Al Qaeda no Paquistão. Este foi um marco histórico na luta global contra o terrorismo, mas nem por isso pôs fim aos ataques. O ano de 2015 foi especialmente dramático em França. Em janeiro, a redação do Jornal Satírico Charlie Hebdo foi alvo de um atentado terrorista que fez 12 vítimas mortais e cinco feridos. O estado islâmico insurgia-se contra as publicações do Jornal que foram vistas pelo estado Muçulmano como um insulto. Em novembro do mesmo ano Paris sofreu o ataque mais mortal desde a Segunda Guerra Mundial na noite de 13 para 14 de Novembro.
A Gastrenterologia vai cada vez mais longe e mais dentro do corpo humano, pois as técnicas permitem cada vez mais visibilidade
Morreram 131 pessoas e cerca de 400 ficaram feridas, numa série de ataques e explosões. Os ataques mais violentos ocorreram junto ao Estádio de França e no Teatro Bataclan onde houve fuzilamentos em massa. O mundo comoveu-se com os acontecimentos em Paris. Nestes dez anos, os negócios do digital tornaram evidente o seu poder económico.
O Facebook assumiu-se como uma empresa poderosa tendo adquirido o Instagram, em 2012, e o WhatsApp em 2014. A era digital começava a dominar em todas as áreas. A norte-americana Netflix iniciou o seu processo de expansão internacional em 2010, começando a transmitir em streaming no Canadá. Em 2013 a Netflix deixou de ser apenas distribuidora e tornou-se produtora de conteúdos, tendo-se estreado com House of Cards nesse mesmo ano. Desde então, não mais parou de produzir e distribuir originais,
dando um forte contributo para a indústria. Em abril de 2020, a Netflix contava com mais de 193 milhões de subscrições espalhadas por todo o Mundo. As séries televisivas ganharam um novo fôlego nesta década através da sua distribuição massiva. A Guerra dos Tronos foi a série de todos os superlativos, conquistando audiências massivas e prémios sucessivos. Estreou em 2011 e terminou em 2019, consagrando-se como uma das melhores séries de sempre e tendo vencido 58 Emmy Awards. Um sucesso semelhante ao que aconteceu com Breaking Bad, que apesar de ter estreado em 2008, terminou durante esta década, em 2013, tendo sido igualmente uma das séries mais aclamadas pela crítica. Em 2016 surgiu outro fenómeno de popularidade, Stranger Things. Uma série de ficção científica ao estilo fantástico passada nos anos 80 que conquistou audiências a nível global. Em 2019, a ficção espanhola conquistou uma fama global com a estreia da série Casa de Papel.
A década cinematográfica ficou marcada por filmes totalmente distintos. Da beleza de O Grande Hotel de Budapeste, que estreou em 2013, à comédia de Amigos Improváveis (2011), passando pela consagração de Natalie Portman em Black Swan (2010) o cinema desta década foi grandioso. Christopher Nolan mostrou toda a sua genialidade em Inception, em 2010, Interstellar, em 2014, e Dunkirk, em 2017. A Rede Social (2010), um filme sobre a criação do Facebook, inaugurou a década cinematográfica, mas seguiram-se outros grandes sucessos de bilheteira como a Árvore da Vida (2012), 12 Anos Escravo e Gone Girl (2014). A Teoria de Tudo, em 2015, conta uma das histórias mais emblemáticas ao fazer uma biografia da vida de Stephen Hawking. La La Land (2017) conquistou os corações dos cinéfilos, na mesma medida, em que Moonlight (2017). Se Lady Gaga se revelou como atriz em Assim Nasce uma Estrela (2018), Joaquin Phoenix consagrou a sua genialidade em Joker (2019).
Na música, a década foi repleta de sucessos, daqueles que passam em todas as rádios de forma compulsiva. O álbum 21, de Adele, foi o mais vendido do século XXI com mais de 30 milhões de cópias vendidas em todo o Mundo. Foi uma década de recordes. Lady Gaga, com a música Shallow, foi a primeira mulher da história a conquistar um Oscar. Um Grammy, um BAFTA e um Globo de Ouro, no mesmo ano. Ed Sheeran, Taylor Swift, Bruno Mars e Katy Perry consagraram-se e emergiram novos fenómenos como Justin Bieber ou Ariana Grande.
O enigma do cancro e o nascimento do IPO
A origem desta doença é tão enigmática como o momento em que começou a despertar a comunidade médica. Situar-se-á algures na transição entre o século XIX para o século XX o momento em que se começou a perceber que uma doença tão polimórfica nas suas localizações, manifestações e comportamento pudesse ser facilmente explicada.
A necessidade de compreender uma doença que se revelava cada vez mais mortal levou a associações com as doenças infeciosas dominantes: a tuberculose e a sífilis. As teorias parasitárias ganhavam adeptos entre a comunidade médica e foi por aí que seguiram os primeiros estudos. Uma proeminente figura da medicina da época, Câmara Pestana, defendeu na sua tese de fim de curso a teoria microbiana da origem do cancro. Esta teoria foi perdendo força à medida que o conhecimento médico evoluía. O cancro começava a ganhar uma dimensão social de relevo. A mortalidade aumentava progressivamente e a deteção da doença acontecia em pessoas cada vez mais jovens. O cancro tornava-se num assunto de saúde pública.
A falta de respostas sobre a origem e resolução desta doença começaram a criar uma aura de receio em torno da doença que tendia para a sua ocultação. As pessoas não morriam de cancro, morriam de doença prolongada. João Azevedo Neves teve um papel de relevo no estudo do Cancro e na incidência desta doença em Portugal, a par de Francisco Gentil. Depois de uma permanência em Hamburgo onde recolheu inúmeros conhecimentos sobre a disciplinas laboratoriais, nomeadamente sobre a organização dos laboratórios de apoio à Clínica. Ao regressar da Alemanha criou o Laboratório de Analyse Clínica do Hospital Real de São José no qual se incluía um pequeno laboratório para o estudo da histopatologia de vários cancros. Em conjunto com Custódio Cabeça e Curry Cabral, Azevedo Neves estabeleceu como plano para organizar a luta contra o Cancro em Portugal, tendo também integrado a Comissão para o Estudo do Cancro, criada em 1904, por Hintze Ribeiro.
O Congresso Internacional de Medicina realizado em Lisboa em 1906, organizado por Miguel Bombarda, João Azevedo e Francisco Gentil, emitiu como recomendação a elaboração de um programa de estudo da doença e das formas de combate.
Miguel Bombarda terá afirmado: “O cancro é a questão mais palpitante do momento atual, aquela que por toda a parte chama a atenção de todas as inteligências e se tornou em mira de todas as atividades no campo da Medicina”. Neste âmbito Francisco Gentil assumiu essa missão de corpo e alma desenvolvendo um importante trabalho na luta conta o cancro e no desenvolvimento de ações de sensibilização das elites médicas da época em relação a esta doença. Francisco Gentil tornou-se um nome maior da luta contra o cancro em Portugal. Na Europa e na América do Norte começavam a surgir várias iniciativas para a criação de estruturas assistenciais dedicadas ao diagnóstico e tratamento do Cancro. Em Portugal foi em 1923 que se fundou a oncologia assistencial, tendo sido criado a 29 de dezembro o Instituto Português para o Estudo do Cancro tendo sido a sua sede provisória no Hospital Escolar de Santa Marta. O Instituto foi criado sob a tutela do Ministério da Educação dado que tinha a função primordial de investigação e ensino, mas
manteve-se autónoma da Universidade de Medicina aceitando doações e fazendo peditórios com o objetivo de poder expandir-se e alargar a sua área de atuação.
No ano de 1927 começou a desenhar-se o Instituto Português de Oncologia (IPO) nos moldes em que o conhecemos atualmente, pela mão de Francisco Gentil que teve um papel determinante na construção deste projeto inovador. Neste ano o Instituto de Seguros Sociais Obrigatórios e Previdência Geral contraiu um empréstimo Junto da Caixa Geral de Depósitos disponibilizando uma verba para a compra de um terreno de 7 hectares situado em Lisboa, na zona da Palhavã, atualmente designada por Sete Rios. Seis meses após a aquisição do terreno era inaugurado o Pavilhão A. Dois anos depois era inaugurado um segundo pavilhão, o pavilhão B. Em 1930, o Instituto adotou a atual designação aquando da inauguração do Pavilhão C.
O IPO foi evoluindo gradualmente à medida que ia conseguindo angariar fundos. Foi um projeto visionário que se foi modernizando gradualmente e desenhou-se o projeto de expansão para o Porto, Coimbra, Évora e Algarve. A fundação do IPO está intimamente relacionada com a investigação e tratamento do cancro em Portugal, tendo sido fundamental para a melhoria dos cuidados médicos prestados aos doentes oncológicos.
Pâncreas, o órgão de todas as dúvidas
“A patologia pancreática é uma área de difícil estudo e compreensão porque começamos a ver pessoas sem fatores de risco, na casa dos 40-50 anos, a terem cancro de pâncreas. Entendo que este é o principal desafio dos próximos anos porque é um tumor para o qual não temos armas terapêuticas suficientemente poderosas”, afirma Pedro Moutinho Ribeiro que refere que um dos grandes problemas associados aos tumores pancreáticos se prende com a sua descoberta tardia e em avançado estado de desenvolvimento não permitindo a realização de cirurgias curativas. Na melhor das estatísticas apenas 20 em cada 100 doentes estão aptos a realizar uma cirurgia curativa e, destes, muitos irão morrer com complicações no pâncreas. A cirurgia, maioritariamente, apenas adia o desenvolvimento súbito da doença. Mais, este tipo de cirurgia acarreta uma elevada taxa de morbilidade. “Se no cólon se consegue tirar um pólipo com relativa facilidade através de uma colonoscopia, a remoção de um quisto no pâncreas implica ainda uma cirurgia agressiva”, refere Pedro Moutinho Ribeiro. Um dos grandes desafios que se colocam nesta área passa pela identificação dos indivíduos de risco com condições de risco ou lesões precursoras nas quais seja possível intervir antes do aparecimento do cancro. “Toda a comunidade médica que faz investigação nesta área procura fazer a identificação de células malignas que permitam identificar os indivíduos de risco para poderem ser tratados atempadamente. Há várias linhas de investigação nessa área. É uma investigação transversal e a Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia tem estado na vanguarda nessa área. Uma das suas secções especializadas é o Clube Português do Pâncreas que tem colocado nos holofotes o problema do cancro do pâncreas”, refere o especialista nesta área. Também Miguel Bispo aponta para o grande investimento que tem sido feito nesta área: “Sabemos que tem aumentado a incidência que acompanha o envelhecimento da população.
Continua a ser o cancro digestivo com pior prognóstico que tem uma taxa de mortalidade muito próxima da sua taxa de incidência.
Há uma revolução necessária no cancro do pâncreas que altere de forma drástica a história natural desta doença. Isso apenas será possível através da implementação de métodos de rastreio eficazes generalizáveis a toda a população”. No entanto, a dificuldade de deteção de lesões precursoras torna os rastreios complexos. “Mesmo as ecoendoscopia, com a sua elevada qualidade de imagem se revelam ineficientes da deteção de lesões. Daí a necessidade de criar alternativas: o método designado por biopsia líquida permitiria, através de um painel de biomarcadores, identificar as pessoas de risco conseguindo atuar precocemente antes do cancro aparecer” refere Pedro Moutinho Ribeiro, co-autor (4o e 8o lugar) de dois artigos na revista New England Journal of Medicine sobre hepatite C.
Entre as condições que podem facilitar o aparecimento do cancro do pâncreas, a pancreatite tem um papel relevante, tal como o tabagismo, a obesidade ou o sedentarismo. Por esclarecer está, também, a suscetibilidade genética associada ao aparecimento de problemas oncológicos ao nível do pâncreas.
As taxas de cura são pouco animadoras e o reflexo do pouco que ainda se sabe sobre este tipo de cancro. Ao contrário dos restantes cancros em que se tem assistido a uma taxa de cura cada vez mais elevada, o Cancro do Pâncreas a taxa de sobrevida média aos 5 anos ronda os 9 por cento, acusando já um ligeiro aumento face ao que acontecia há alguns anos onde não passava dos 5 por cento. Este número torna-se ainda mais relevante quando se estima que o Cancro do Pâncreas, em breve, seja o segundo cancro mais mortal, a seguir ao Cancro do Pulmão.
O papel do grande protagonismo do gastrenterologista, transversal na dinâmica da prevenção, diagnóstico e tratamento dos mais importantes tumores digestivos, confere a década um decisivo contributo à nossa afirmação na Oncologia Digestiva, Cuidados Paliativos e a Gestão em Saúde.