No Portugal do início dos anos 60 cabe uma realidade marcada pelo atraso de desenvolvimento. Um atraso transversal a todas as áreas da sociedade, da cultura à medicina, da tecnologia à literacia. Portugal era um país empobrecido, mas com vontade de voar mais alto, sobretudo além do regime ditatorial que deixava fora de fronteiras as inovações e ideias que o colocassem em causa.
Com uma população de 8,9 milhões de pessoas, onde 92% tinha menos de 65 anos, a esperança média de vida no início da década de 60 era de 60,7 anos para os homens e 66,4 anos nas mulheres. À época, as principais causas de morte em Portugal ocorriam em pessoas que padeciam de doenças do aparelho digestivo. Dos 29.765 óbitos que ocorreram em 1960, 10.058 foram por doenças do aparelho digestivo e 1.785 por cirrose hepática.
Ao mesmo tempo, o mundo além-fronteiras despertava para uma realidade a que se viria a designar de “Os anos de Ouro”. Os efeitos devastadores da 2ª Guerra Mundial começavam a atenuar-se e o mundo começava, também, a ganhar consciência dos desastres do século XX, sobretudo após duas Grandes Guerras.
A década que começou com a chegada da Rússia ao espaço em 1961 e que terminou com a chegada dos Estados Unidos à lua em 1969, foi abrilhantada pelos fenómenos culturais emergentes da época como o do célebre quarteto de Liverpool que formou os Beatles. Enquanto estes lideravam a invasão musical britânica aos Estados Unidos, seguidos pela irreverência dos Rolling Stones,
a televisão a cores disseminava-se pelo mundo. Nas artes sucedem-se movimentos vanguardistas que têm Nova Iorque como epicentro de uma revolução cultural, com correntes artísticas que foram do minimalismo à Op Art, culminando na Pop Art.
Enquanto Andy Warhol transformava uma lata de sopa de tomate em arte, a Europa assistia ao início da Guerra Fria. No mesmo ano, 1961, em que os tijolos se sobrepunham à razão da política dividindo a cidade de Berlim ao meio, Portugal assiste ao início da Guerra Colonial que haveria de durar até 1974. Fazer a guerra “lá fora” catapultou centenas de milhares de jovens para o Ultramar e condicionou muito dos Orçamentos de Estado de um país que necessitava de reformas urgentes. No Portugal dos anos 60, onde a esperança de vida era diminuta e a maior parte das pessoas viviam fora de Lisboa, Porto e Coimbra, assistiu-se à partida dos mais jovens para a guerra. Entre eles, partiam também os poucos que tinham formação superior e que tinham a capacidade de catapultar o país para um novo ciclo à semelhança do que ocorria no resto do Mundo.
No início da década de 60 apenas 1% da população portuguesa tinha instrução equivalente ao ensino superior. Aliás, mais de 65% das pessoas com 15 ou mais anos nunca tinham, sequer, frequentado a escola. Estes dados espelham-se também na evolução da medicina portuguesa, à época. Por cada 100 mil habitantes portugueses existiam, apenas, 80 médicos e 108 enfermeiros. Mais de 82% dos partos ainda ocorriam em casa, assistidos apenas por parteiras, o que contribuía para uma mortalidade infantil elevada, por cada 100 nascimentos havia 7,7 óbitos. Em resultado desta falta de investimento, os cuidados de saúde chegavam apenas a 18% da população (na Europa a média era de 70,9%), sendo que o investimento em saúde era de apenas 1,7% do PIB nacional (comparativamente com a média europeia de 3,8%).
Com um país a contemplar passivamente o que acontecia no Mundo, à Medicina começavam a chegar os ventos de mudança e a vontade de fazer novo e diferente. Mas, os sinais do Estado eram parcos perante as necessidades. O X Governo, liderado por Salazar, só em 1958 (dez anos depois da criação da Organização Mundial da Saúde, instituição da Portugal foi fundador) cria, sem pompa ou circunstância, por Decreto-Lei com um único artigo, o Ministério da Saúde e Assistência, área que anteriormente estava sob a tutela do Ministério do Interior. Henrique Martins de Carvalho, o primeiro titular do Ministério da Saúde e Assistência, acaba por escrever, em 1989, que “o professor Oliveira Salazar transigira com a opinião pública e criara o Ministério da Saúde; mas, no fundo, não tinha grande interesse em que este equacionasse (e procurasse atuar com alguma energia) os problemas essenciais do setor.
Os portugueses na década
8.9 milhões
população
portuguesa
92 %
com menos
de 65 anos
Esperança média de vida
60,7 anos
homens
66,4 anos
mulheres
1 %
População com instrução
equivalente ao ensino superior
Desejava ter como ministro quem fosse um funcionário administrativo razoável e criasse boas relações, especialmente com os médicos, na altura bastante agitados e, para o tempo, invulgarmente reivindicativos.”
O Estado português, até então, não tinha chamado a si a missão da Saúde. Esta tarefa estava entregue às Misericórdias, que geriam grande parte das instituições hospitalares e outros serviços de saúde, aos Serviços Médico-Sociais (postos das “caixas”) da Federação de Caixas de Previdência, financiados por quotas dos trabalhadores e empresas de determinadas profissões, serviços de Saúde Pública, vocacionados para as ações de vacinação ou proteção materno-infantil, serviços privados para estratos socioeconómicos mais elevados, e os hospitais estatais, localizados nos grandes centros urbanos. Seis em cada dez portugueses não estavam cobertos por qualquer sistema de saúde.
A narrativa do Estado Novo, dirigida pelo Diretor do Secretariado de Propaganda Nacional, António Ferro, vangloriava-se com o avanço extraordinário da sociedade portuguesa, “não admitindo dúvidas a quem quer que seja”. Mas em 1961, apenas um em cada cinco partos era feito em ambiente hospitalar, sendo que 42,2% dos fetos morriam no parto e 28% no primeiro mês de vida. Quase 3 milhões de portugueses eram analfabetos. O rendimento de cada português ficava-se nos 275 dólares, enquanto que a média da OCDE era de 1.474 dólares. Por outro lado, faltava ao país saneamento básico, sobretudo ao nível do abastecimento de águas. Durante o período do Estado Novo há dois planos que se destacam: o Plano de Abastecimento de Águas às Sedes dos Concelhos, apresentado em 1944, e o Plano de Abastecimento de Águas às Populações Rurais, de 1960. Em comum estes dois planos tinham a sua orientação exclusiva para a distribuição de águas. Os sistemas de esgoto teriam de esperar pela década de 1970 para avançar. Mesmo assim, das 8.555 obras planeadas apenas 1.107 terão sido concluídas.
Como exemplo da falta de expediente do executivo nesta matéria basta referir o prazo de seis anos dado à Direção-Geral dos Serviços de Urbanização (DGSU) para proceder ao inventário das nascentes para esse efeito, ou a ausência de prazos para a execução das obras. Um relatório de 1956 da DGSU previa um prazo de 160 anos para a conclusão do abastecimento de águas às populações com mais de 100 habitantes em todo o território nacional. Neste quadro, devemos ter presente que havia várias doenças infectocontagiosas, propagadas pela falta de salubridade das águas, e que tinham complicações do foro digestivo, colocando em risco milhares de pessoas. Disso era exemplo a cólera, uma doença bacteriana intestinal, ou a febre tifoide, cuja complicação principal era a perfuração intestinal.
Recuperar o tempo perdido
No século XX a humanidade começou a olhar para a ciência como uma forma de transformar o mundo num lugar melhor. Às descobertas fisiológicas de Claude Bernard que deixaram um legado para as gerações que lhe sucederam, juntaram-se as de Pasteur e Koch que permitiram observar aquilo que até então era inobservável. Com a microbiologia abriu-se um novo mundo ao identificar as bactérias e protozoários que causavam muitas das doenças para as quais até então não se conhecia a causa. Com a descoberta dos primeiros anestésicos abriu-se caminho para o desenvolvimento da cirurgia e com a descoberta dos raios X por Röntgen foi possível ver, pela primeira vez as estruturas internas dos seres vivos. Estas descobertas aconteciam à medida da criatividade daqueles que acreditavam na medicina e naquilo que ainda estava por vir. Recorde-se que as bases da genética surgiram quando Mendel começou a fazer cruzamentos com ervilhas num pequeno quintal em Brno.
Por estes anos, em Portugal existia apenas uma faculdade de medicina, em Coimbra, e três hospitais centrais situados em Lisboa, Porto e Coimbra, que propagavam o ensino da medicina. A Faculdade de Medicina de Lisboa, situada no Campo Santana, teve origem na Real Escola de Cirurgia, criada em 1825, nas imediações do Hospital de São José. Em 1836 surgiu a designação Escola Médico-cirúrgica de Lisboa. A promulgação das leis da criação das Universidades e Faculdades de 1911, traria a denominação atual de Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
No interior, os cuidados médicos estavam a cargo das Misericórdias e dos seus parcos recursos. A tuberculose e as epidemias da cólera, febre amarela e varíola faziam inúmeras vítimas a par da já mencionada elevada taxa de mortalidade infantil. Se Portugal partiu com atraso relativamente ao resto do mundo, foi conseguindo atalhar caminho ao longo dos 100 anos do século XX, estando, atualmente, no mesmo nível de desenvolvimento dos restantes países. Para isso contribuiu, em muito, a vontade dos muitos que foram além-fronteiras em busca de conhecimento e o trouxeram para Portugal lutando contra as dificuldades de subdesenvolvimento que persistiam quer a nível académico quer a nível tecnológico.
Ao longo deste século é louvável o trabalho desenvolvido em torno de dois grandes objetivos: a redução da taxa de mortalidade infantil, que é atualmente uma das mais baixas do mundo, e o aumento da esperança média de vida que subiu cerca de 20 anos desde o início da década de 60 até à atualidade. Para isso, contribuíram reformas fulcrais ao nível da saúde, também elas de início de século, e destas destaca-se o papel de Ricardo Jorge ao nível da saúde pública, e o de José da Câmara Curry Cabral na reorganização hospitalar. Se o primeiro teve a ousadia de criar o primeiro cerco sanitário do país para travar uma epidemia de peste bubónica e ser expulso da sua cidade natal por conta dessa mesma ousadia, o segundo foi visionário no que respeitou à reorganização dos hospitais. Apesar da lucidez de pensamento de ambos, foram necessários vários anos até que lhes reconhecessem o mérito e implementassem estas reformas hospitalares de uma forma efetiva. Hospitais sobrelotados, sem condições de higiene. Clínica externa sem separação de patologias ou de sexo. Hospitais sem farmácias ou cozinhas, sem serviço de urgência e sem quadros hospitalares.
1ª Assembleia da SPG acontece a 30 de janeiro de 1960
Assim era o panorama hospitalar português no início de século. Recorda A.J. Barros Veloso, em Médicos e Sociedade – Para uma história da Medicina em Portugal no século XX, que o Hospital de São José tinha um estábulo com vacas para abastecer as necessidades de leite dos pacientes, vacas essas que estariam infetadas com tuberculose bovina.
Serve esta história para ilustrar a falta de salubridade e a importância da reforma efetuada por Curry Cabral. Sendo também da sua responsabilidade a criação do conceito de consultas externas que permitiam retirar dos hospitais pessoas que por lá permaneciam por não terem onde ficar.
Outra medida importante que surgiu nesta fase, e pela mão de Azevedo Neves, foi a criação do primeiro laboratório de análises clínicas. Este nome incontornável da história da Anatomia Patológica em Portugal, havia estagiado na Alemanha, em Berlim, de onde importou os conceitos para criar um local que cumprisse os requisitos básicos de um laboratório. Aqui também se começou a desenvolver a bacteriologia, a química, a radioscopia, a radiografia e a eletricidade médica. Surgiam assim os primeiros meios complementares de diagnóstico em Portugal. Curry Cabral, e a sua reforma, abriu caminho para a que a chamada Geração de 1911 pudesse tomar em mãos uma medicina arcaica e transformá-la numa medicina orientada para a modernidade.
Do geral para o particular
A queda da monarquia e a instauração da República trouxeram consigo uma noção revolucionária nas várias faces da sociedade, nomeadamente na medicina. A 25 de Maio de 1911 foi emitido um decreto que instava ao serviço de assistência pública. A Constituição desse mesmo ano veio reconhecer de forma explicita de todos à assistência. Com as migrações do interior para o litoral e o crescimento das cidades, começou a aumentar a quantidade de doenças que se espalhavam pelos bairros mais pobres das grandes cidades. As necessidades médicas eram cada vez mais prementes e diversificadas. Começou a notar-se uma natural necessidade de especialização dos médicos. A primeira e mais evidente distinção a acontecer veio com a distinção entre os médicos e os cirurgiões.
O aumento do conhecimento e o aparecimento de novas técnicas de diagnóstico contribuíram para a especialização dos médicos em áreas distintas.
Saúde em Portugal
1 médico
por cada
1.250 habitantes
82 %
dos partos aconteciam em casa
0,40 €
Despesa média da ADSE por beneficiário
As primeiras especialidades a conquistar lugar na medicina foram a pediatria, a psiquiatria, a obstetrícia, a oftalmologia e a otorrinolaringologia. Ao longo dos anos, as especialidades médicas foram crescendo à medida das necessidades dos hospitais e também da disponibilidade dos médicos para criar serviços especializados e partilhar conhecimento. A par desta especialização nos hospitais, também se promoveu uma reforma no ensino médico. As especialidades começavam, assim, a ser ensinadas nas cadeiras da universidade. Percebia-se a necessidade de dividir a medicina,
para a tornar mais efetiva e mais adequada aos cuidados dos pacientes. Entre 1904 e 1918, de acordo com o Boletim Clínico dos Hospitais Civis de Lisboa, foram criadas consultas externas em várias especialidades que até então não existiam, entre elas a consulta de doenças do aparelho gastrointestinal. A par desta, surgiram também as consultas de dermatologia, de doenças das mulheres, doenças das crianças, doenças dos órgãos genitourinários, doenças dos pulmões e coração, doenças das grávidas e dos recém-nascidos, neurologia e estomatologia.
No final dos anos 20, os Hospitais Civis de Lisboa contavam 14 especialidades entre os serviços prestados. O desenvolvimento dos meios complementares de diagnóstico também contribuíram para o desenvolvimento destas especialidades, uma vez que permitiam diagnósticos mais rigorosos e permitiam o encaminhamento de doentes para os serviços adequados às suas maleitas. Dada a dependência que as especialidades tinham da vontade dos médicos, estas surgiram de uma forma mais regular em Lisboa do que em Coimbra e no Porto.
A criação da Ordem dos Médicos em 1938 veio consagrar as especialidades médicas de uma forma organizada e com regras definidas. O primeiro regulamento de habilitação do título de especialista e do exercício das especialidades foi publicado seis anos depois da criação da Ordem. Nele se definia que esse título só podia ser usado após um exame de habilitação. Os médicos poderiam acumular mais do que uma especialidade.
O Conselho Geral da Ordem dos Médicos reuniu-se a 15 e 16 de Dezembro de 1944 reconhecendo 19 especialidades (estomatologia, cirurgia geral, pediatria, ginecologia, tisiologia, oftalmologia, otorrinolaringologia, urologia, radiologia, análises clínicas, dermatologia-venereologia, obstetrícia, cardiologia, fisioterapia, psiquiatria, gastrenterologia, neurologia, ortopedia e doenças tropicais) e concedendo 1.254 habilitações para exercer as diferentes especialidades, sendo que a gastrenterologia contou com 24 habilitações. Em 1950, a anestesia foi reconhecida como especialidade e seis anos depois surgiram a cirurgia torácica, a endocrinologia-nutrição e a radioterapia e a medicina nuclear. Até 1970 foram reconhecidas mais 5 especialidades pela Ordem dos Médicos: a anatomia patológica, a neurocirurgia, a neuropsiquiatria infantil, a cirurgia plástica e reconstrutiva e a cirurgia pediátrica.
1ª Assembleia da SPG acontece a 30 de janeiro de 1960
No entanto, e apesar desta progressiva evolução, o caminho para a especialização foi sinuoso. Sobretudo por parte dos defensores da medicina interna que não encararam de bom grado esta fragmentação. Um dos defensores da continuidade da medicina interna terá sido Pulido Valente.
Este entendia que na medicina interna cabiam todas as especialidades e todas as patologias não cirúrgicas. O avanço da medicina, quer a nível técnico quer a nível tecnológico fizeram da especialização uma inevitabilidade.
O desenvolvimento de meios de diagnóstico e, nomeadamente, da fisiopatologia permitiram avanços determinantes. Com a conjugação de técnicas que começava a aparecer era possível não só identificar a localização e a natureza das lesões, mas também as alterações fisiológicas que provocam. Em consequência, começaram a ser desenvolvidas novas técnicas exploratórias que permitiam uma identificação mais rigorosa das patologias. A cardiologia foi a primeira especialidade a demarcar-se da medicina interna, sobretudo pela mão de Eduardo Coelho. Em 1977, a Ordem dos Médicos haveria de criar os Colégios das Especialidades como órgãos consultivos e como forma de congregar os médicos de cada uma das especialidades.
Foi este o panorama em que a gastrenterologia se foi autonomizando. A década de 60 marcou, claramente, o início da independência desta especialidade. Os primeiros nomes a destacar-se nesta área terão sido Frederico Madeira, José Pinto Correia, e Miguel Carneiro Moura. O país assistia a um crescimento generalizado desta área da medicina. Em Lisboa destacam-se os nomes de António Saragoça, António Catita, José Manuel Carrilho Ribeiro e Carneiro Chaves. No Porto, Tomé Ribeiro surgia como um dos precursores da especialidade e em Coimbra evidenciava-se o trabalho de Gouveia Monteiro, Diniz de Freitas e António Donato.
Foi no Hospital dos Capuchos que surgiu uma seção de Gastrenterologia, ainda que como um anexo de Medicina, pela mão de António Alvelos e com a colaboração de José Figueiredo e António Cruz Pinho, dois especialistas dos Hospital Militar que já tinham experiência no procedimento das endoscopias digestivas. Estas eram realizadas por meio de aparelhos rígidos que tinham sido desenvolvidos quer pelo Hospital Militar, quer pelo Instituto Português de Oncologia de Lisboa. A endoscopia tardava em chegar aos Hospitais Civis de Lisboa pela já referida tendência para a não especialização. A especialização impôs-se ao longo do século XX de uma forma sustentada, tendo atingido na década de 80 o reconhecimento, por parte da Ordem dos Médicos, de 48 especialidades.
Este crescimento está, em muito, associado às tecnologias que foram emergindo ao longo do século. Foram estas a ditar a necessidade de especialização e até de subespecialização. A capacidade de entrar dentro do corpo, visualizar as estruturas e perceber as doenças e as suas consequências para o corpo estruturaram as bases da medicina. Segmentar tornou-se fundamental para evoluir. Esta é uma realidade quando se fala de transplantes e os primeiros a surgirem na Gastrenterologia aconteceram nesta década. Em Dezembro de 1966 William Kelly e Richard Lillehei conseguiram alcançar um feito histórico para a medicina ao realizar o primeiro transplante de pâncreas. Este transplante aconteceu no estado do Minnesota, nos Estados Unidos, e foi feito num paciente diabético que fazia diálise. Sete anos mais tarde, em 1967, Thomas Starzl conseguiu um feito igualmente relevante para a Gastrenterologia, ao realizar o primeiro transplante de fígado em que o transplantado sobreviveu para além de alguns dias.
Tratava-se de uma criança de dois anos que sobreviveu treze meses acabando por sucumbir devido a metástases resultantes do cancro. Este “sucesso” foi ainda mais relevante por ter sido o primeiro a acontecer após várias tentativas em que os pacientes acabaram por morrer devido a complicações associadas ao transplante. Foi esta especialização que fomentou o aparecimento das sociedades científicas. Estas serviam o propósito de reunir os médicos de uma especialidade, de aprofundar conhecimentos e criar debate em torno das dificuldades que enfrentavam. Estas sociedades médicas criaram as suas próprias publicações e começaram a organizar congressos médicos nacionais e internacionais. A primeira sociedade médica a surgir em Portugal foi a Associação Portuguesa de Urologia, em 1923, presidida por Artur Ravara. A Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia surgiu em 1960.
A aurora da SPG
Francisco Gentil recebe uma carta de duas figuras ilustres, com um desafio: criar uma sociedade científica de Gastrenterologia em Portugal. Foram eles Henry Bockus, na altura presidente da Organização Mundial de Gastrenterologia (WGO) e do seu Secretário da Comissão de Educação, Gerardo Siffert. Francisco Gentil e Pulido Valente juntaram esforços e, a 22 de outubro de 1959, no IPO de Lisboa, foi fundada a Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia (SPG). Nesse momento foi decidido que a SPG seria uma secção da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa com os Estatutos da mesma. O primeiro presidente foi o Professor Cascão de Ansiães, antigo pupilo de Pulido Valente e o Secretário o
Dr. Ferreira Malaquias, sendo eleito sócio honorário o Professor Gentil Martins que, por motivos de doença, não pode estar presente. A 1a Assembleia da SPG acontece a 30 de janeiro de 1960, data que marca o nascimento da SPG. No discurso que fez, Cascão de Anciães relembra o contributo de Pulido Valente na divulgação da cultura médica alemã, referindo a visão do seu mestre quase 40 anos antes, quando o incentivou a aperfeiçoar o conhecimento da patologia digestiva na Alemanha. Após eleitos os órgãos sociais, Henry Bockus, Geraldo Siffert, Clifford Barborka (na altura presidente da American Gastrenterological Association ) e Pulido Valente são eleitos, por unanimidade sócios honorários da SPG.
No Congresso Mundial de Munique da Organização Mundial de Gastrenterologia realizado em 1962, e por influência de Henry Bockus e Siffert, a SPG foi admitida na WGO e na Association de Sociétés Nationales Européenes et Méditerranéennes de Gastroenterologie. Nesse ano, o mundo da Gastrenterologia também viu nascer a World Endoscopy Organization (WEO), sociedade que evidenciava os avanços tecnológicos na área da endoscopia, com técnicas que viriam a revolucionar a especialidade. A sua congénere portuguesa, a Sociedade Portuguesa de Endoscopia Digestiva (SPED) só haveria de surgir em 1979. Em 1966 a SPG faria a sua primeira Reunião Nacional, realizada no Hospital de Santa Maria, onde se decidiu que a sua presidência fosse rotativa pelos três grandes centros: Lisboa, Porto e Coimbra.
Disrupção da tecnologia
Em 1960 Basil Hirschowitz tinha visto o corolário da sua investigação ser premiado com o primeiro modelo de produção de um endoscópio de fibra ótica cujo protótipo tinha criado em 1957. Em 1964, a empresa japonesa Olympus estabelece a sua subsidiária europeia em Hamburgo. Nessa altura, Diniz de Freitas estava precisamente no Hospital de Hamburgo e explica que “havia ótimas relações com o Japão ainda por causa da guerra, e o centro da Olympus, que era já nessa altura um grande fabricante de fibroendoscópios, era em Hamburgo onde eu estava a trabalhar. Contactei, na década de 1960, com essa nova tecnologia. Quando cheguei a Coimbra, e a Portugal, tive, de facto, o privilégio de ser o pioneiro em Portugal da maioria das técnicas que se aplicam de endoscopia Digestiva. Trazia todos os ensinamentos e práticas da Alemanha.
O Professor Gouveia Monteiro [o meu mentor] nunca praticou endoscopia, mas viu que eu trazia essas capacidades técnicas e pediu-me que no serviço que ele dirigia na altura que eu diligenciasse no sentido de arrancar com a endoscopia em Portugal.”
A endoscopia abriu um verdadeiro novo mundo e revolucionou o diagnóstico gastrointestinal. Se até então se fazia uso da radiologia, a partir de então a endoscopia passou a dominar a avaliação dos doentes sobretudo na avaliação do tubo digestivo, estômago e cólon. Foram estas as técnicas emergentes que convenceram João Castel-Branco da Silveira em definitivo. Depois de se licenciar em Medicina e antes de cumprir o serviço militar na Guiné,
ambicionava a carreira de cirurgião. A participação na guerra do Ultramar trocou-lhe as voltas na volta da vida. “Escolhi uma especialidade que nessa altura emergia no panorama médico-cirúrgico nacional, que era a gastrenterologia, mercê de novas técnicas que se adivinhavam que seriam essenciais para difundir a especialidade. No Hospital Santa Maria comecei a fazer endoscopias com os aparelhos rígidos e semirrígidos, sob a tutela do Professor Carneiro Chaves”, recorda. Assistia-se à explosão dos conhecimentos tecnológicos adaptados às necessidades da ciência. Os médicos começavam a ganhar olhos para dentro do corpo dos pacientes. E os pacientes eram cada vez mais, não só porque havia cada vez mais pessoas nas cidades, mas também porque para além das Caixas de Previdência começavam a surgir outros sistemas de assistência médica à população.
Esta surgiu como um esquema de proteção aos funcionários públicos e estava sob a tutela do Ministério das Finanças. Em 1966, este apoio abrangia 57.174 pessoas com uma despesa média de 40 cêntimos por beneficiário. Em 2018 abrangia 1.204.964 pessoas com uma despesa média de 454,8 euros por beneficiário.
Começava a desenhar-se um plano de Saúde Pública cada vez mais consistente e alargado. Foi assim com a ADSE, mas também com os programas de relevo que começavam a aparecer como o Programa Nacional de Vacinação que foi lançado em 1965.
Implementado cerca de uma década antes da recomendação da Organização Nacional de Saúde, este programa contribuiu para a erradicação da difteria, da poliomielite, do tétano pré-natal e do sarampo.
A forma como foi implementado fez deste programa um sucesso a nível mundial.
A década de 60 foi uma década de mudança na vida e na vivência dos portugueses. Apesar de estarem a uma distância telescópica do resto do mundo, muito fomentada pela ditadura que vivenciavam, começavam a surgir sinais de modernidade, mas sempre como uma cópia do que já se fazia há muito no estrangeiro.
O primeiro supermercado de Lisboa foi inaugurado em Outubro de 1961, no Saldanha. Mais não era do que uma cópia dos “supermarkets” ingleses e americanos que os funcionários visitaram para reproduzir em Portugal. O sucesso foi tal que muitos outros se seguiram. Era um novo mundo para as donas de casa, que recheavam as despensas de indispensáveis caldos Knorr e Tupperwares. Mas nem só de apetrechos domésticos se fazia a revolução feminina, foi em 1962 que a pílula chegou a Portugal.
Já os homens estavam de olhos postos em outras realidades além da vida doméstica, tão destinada às mulheres nesta década. Os carros começaram a encher o olho aos que tinham um pouco mais de posses. Entre 1960 e 1969 o parque automóvel português triplicou, atingindo os 300 mil veículos. Pelo meio, foi a Seleção de Nacional de Futebol a fazer sonhar os amantes de futebol.
A estreia de Portugal num campeonato mundial aconteceu em 1966. Ante a expectativa da estreia, e dos feitos que Eusébio poderia vir a concretizar, os portugueses encheram as salas de cinema para assistirem a um jogo que, devido a uma falha de transmissão da Eurovisão, só começou a ser emitido aos dois minutos quando Portugal já estava a ganhar por um a zero, sem que nenhum português em Portugal tivesse assistido a tal feito. O terceiro lugar no campeonato disputado em Inglaterra foi, no entanto, a segunda alegria dos amantes do desporto que já em 1960 tinham assistido à vitória da medalha de prata em vela de Mário Gentil Quina nos Jogos Olímpicos de Roma. O ilustre velejador, e ainda mais ilustre gastrenterologista, foi um dos grandes mentores da especialidade em Portugal durante esta década. Presidiu à SPG entre 1989 e 1991. Porto e Lisboa alargavam-se aos arredores, sinal do crescimento progressivo das cidades. A 22 de Junho de 1963, a cidade invicta inaugura a Ponte da Arrábida e a 6 de Agosto de 1966 a margem sul do Tejo fica mais próxima de Lisboa com a inauguração da Ponte 25 de Abril, à época designada Ponte de Salazar ainda que contra a vontade do mesmo.
O mesmo que haveria de “cair da cadeira” precisamente dois anos depois, em 1968. Era o início do fim de um regime que marcou a história portuguesa para sempre.
Para trás começavam também a ficar milagrosas as crenças populares porque para a frente vinha a crença numa medicina mais capaz. Crenças como as da milagrosa Fonte das Ratas, situada no Largo das Alcaçarias em Alfama, acabariam por sucumbir à mercê da evidência científica. Conta-se que as águas desta fonte tinham poderosos efeitos no tratamento das doenças de pele, nos problemas de fígado e, ainda, nos dos intestinos. Quando a fonte foi “descoberta”, em Abril de 1963, havia verdadeiras romarias de
crentes que traziam a água bendita aos garrafões. Dia e noite a este lugar se dirigiam pessoas que garantiam que a bendita da água lhes havia curado as maleitas. Terá sido uma análise à qualidade da água a encerrar este lugar no final desse mesmo ano não sem antes haver quem garantisse a cura através das águas. Serve a história da Fonte das Ratas para ilustrar um passo em diante. As crenças que marcaram vários séculos começavam a ter fim com a evidência da ciência, as entidades públicas começavam a não ter pejo em pôr fim aos verdadeiros desastres de saúde publica e a população começou a ver a medicina como a solução para as suas maleitas.