Alexandra Fernandes
Serviço de Gastrenterologia, Centro Hospitalar de Leiria
Estabelecer o diagnóstico de pancreatite aguda com base apenas na elevação das enzimas pancreáticas
O diagnóstico de pancreatite aguda, tal como está definido no Consenso Internacional de Atlanta, revisto em 2012, deve ser estabelecido quando estão presentes pelo menos 2 dos 3 critérios seguintes: dor abdominal típica (localizada aos quadrantes superiores, com ou sem irradiação dorsal, de início súbito), elevação da amilase e/ou lipase superior a 3 vezes o limite superior do normal, e achados imagiológicos consistentes com inflamação pancreática (ecografia ou TC abdominal)1. É frequente assumir-se o diagnóstico de pancreatite aguda, perante casos de dor abdominal (não típica) que também podem cursar com elevações ligeiras a moderadas dos valores séricos de amilase e lipase, nomeadamente quadros de colangite aguda, colecistite aguda, úlceras pépticas complicadas, diverticulites, entre outras. Deste modo, perante uma dor abdominal sem as características típicas, as elevações das enzimas pancreáticas devem ser corroboradas por alterações imagiológicas pancreáticas ou peripancreáticas que permitam confirmar o diagnóstico2-4.
Realização de TC abdominal na admissão de todos os doentes com suspeita de pancreatite aguda
A realização de TC abdominal, no contexto de urgência, perante uma suspeita de pancreatite aguda, apenas está indicada nos casos de incerteza diagnóstica, ou seja, quando há uma incongruência entre as características da dor e os valores séricos de amilase e/ou lipase; e ainda nas situações graves em que pode ser necessário excluir complicações locais que impliquem uma orientação terapêutica mais invasiva. A extensão da doença, especialmente a magnitude da necrose, pode ser subestimada pela TC nos primeiros dias de doença. Por outro lado, não há evidência que a TC realizada precocemente tenha maior valor preditivo de gravidade comparativamente à avaliação clínica. Adicionalmente, o risco de nefrotoxicidade do contraste utilizado na TC não deve ser negligenciado, especialmente no contexto da pancreatite aguda, que por si só acarreta maior risco de lesão renal aguda1-4.
Implementação inadequada de fluidoterapia
A implementação precoce e adequada de fluidoterapia é um ponto fulcral no manejo da pancreatite aguda, especialmente nas primeiras 48 horas após o início da dor. O sequestro de fluidos para o 3º espaço é uma consequência crítica e precoce na fisiopatologia da pancreatite aguda, e está associado ao desenvolvimento de necrose pancreática e falência orgânica, se não for adequadamente corrigido na admissão. No entanto, a instituição de fluidoterapia demasiado agressiva também está associada ao desenvolvimento de complicações, nomeadamente dificuldade respiratória e síndrome compartimental abdominal. Deste modo, a ressuscitação com fluídos deve ser guiada por objetivos: FC <120 bpm PAM 65-85mmHg; Débito urinário > 0.5-1ml/Kg/h; Hematócrito 35-44%2-4. De acordo com o ensaio randomizado “Waterfall”, uma estratégia de fluidoterapia mais agressiva (bólus de 20 ml/Kg em todos os doentes, seguido de perfusão de 3 ml/Kg/h), quando comparada com uma abordagem moderada (bólus de 10 ml/Kg (durante 2h), apenas em doentes com hipovolémia, seguido de perfusão de 1,5ml/Kg/h), associou-se a maior risco de sobrecarga pulmonar, bem como uma tendência para sintomatologia mais intensa e internamentos mais prolongados, sem haver diferenças na incidência de pancreatite aguda moderada ou grave5.
Manter o doente em jejum
Atualmente é consensual que não há qualquer benefício em manter jejum nos doentes com pancreatite aguda. Pelo contrário, reiniciar a dieta precocemente, além de providenciar nutrição, previne a atrofia da mucosa intestinal e, deste modo, reduz o risco de translocação bacteriana e infeção intra-abdominal2-4. Nos casos de pancreatite aguda ligeira e na maioria dos casos moderados, uma dieta oral hipolipídica deve ser reintroduzida assim que a dor abdominal e as náuseas melhorem (mesmo com recurso a analgesia e procinéticos)2-4,6. Nos casos graves, o suporte nutricional, nomeadamente a nutrição entérica (por via nasogástrica ou nasojejunal), pode ser necessária quando não é possível iniciar dieta oral até às 72 horas2-4,6,7. A nutrição parentérica deve ser reservada para situações muito graves (como a Síndrome Compartimental Abdominal), em que não é possível instituir nutrição entérica, estando associada a maior risco de complicações infeciosas2-4
Administração profilática de antibioterapia
Na fase inicial da pancreatite aguda, a presença de febre e elevação dos parâmetros inflamatórios podem levar à instituição inadequada de antibioterapia, devido à incapacidade de distinguir entre SIRS (comum na pancreatite aguda) e infeção. As guidelines ocidentais mais recentes são unânimes em não recomendar a utilização profilática de antibióticos na pancreatite aguda, nomeadamente nos casos necrotizantes em que não haja uma forte suspeita ou evidência de infeção (comprovada por culturas ou evidente nos exames de imagem)2-3. Uma meta-análise recente demonstrou que a utilização profilática de carbapenemos não teve efeito benéfico na prevenção de sobreinfeção da necrose, nem reduziu a mortalidade8. O doseamento de procalcitonina sérica na admissão, para identificar os doentes com eventual benefício para iniciar antibioterapia, não é consensual, nomeadamente sabendo que habitualmente a sobreinfeção no contexto da pancreatite aguda ocorre algumas semanas após o início do quadro9.
Drenagem precoce de coleções necróticas peripancreáticas
Nos últimos 10 anos, a estratégia de intervenção na pancreatite aguda necrotizante mudou drasticamente. A abordagem cirúrgica precoce estava associada a elevadas taxas de complicações com morbilidade e mortalidade significativas. Múltiplos estudos randomizados mudaram este paradigma. Atualmente, sempre que possível, as intervenções devem ser adiadas pelo menos 4 semanas após o início do quadro, e a abordagem deve ser “step-up”, começando por drenagens minimamente invasivas endoscópicas e/ou percutâneas, seguidas de procedimentos de necrosectomia endoscópica, reservando-se as cirurgias minimamente invasivas (VARD) para os casos refratários ou inacessíveis às técnicas endoscópicas e percutâneas2-4,10,11. As principais indicações para intervenção são: coleção (peri)pancreática com forte suspeita clínica ou evidência de sobreinfeção (em culturas ou exames de imagem); sintomatologia persistente e debilitante; síndrome de ducto interrompido, síndrome de obstrução gástrica2-4. Mesmo nos casos de coleções sobreinfetadas, a intervenção deve ser reservada aos doentes que não respondem à antibioterapia. A escolha da modalidade de drenagem (percutânea e/ou endoscópica com recurso a próteses plásticas ou metálicas) deve ser feita após discussão multidisciplinar, e depende da localização e extensão das coleções, bem como da experiência do centro2-4,10,11.
Adiar a CPRE em doentes com pancreatite aguda e colangite aguda concomitante
A litíase biliar é a principal etiologia de pancreatite aguda. Se há uma forte suspeita de colangite aguda concomitante ao diagnóstico de pancreatite aguda (de acordo com os critérios de Tokyo 2018), a realização de CPRE não deve ser adiada, devendo ser efetuada nas primeiras 24 a 48 horas, de acordo com a gravidade da colangite, para diminuir o risco de sépsis, falência orgânica e morte2-4. O timing ideal para a realização de CPRE nos doentes com coledocolitíase obstrutiva no contexto de pancreatite aguda, mas sem evidência de colangite, não é consensual. No entanto, os casos de pancreatite aguda grave parecem beneficiar de CPRE urgente12.
Referências: