Pesquisa

Erros comuns

Erros na abordagem clínica dos tumores neuroendócrinos do tubo digestivo

Miguel Bispo

Serviço de Gastrenterologia, Fundação Champalimaud

Erros na caracterização e estadiamento dos tumores neuroendócrinos do tubo digestivo

Os tumores neuroendócrinos (TNEs) do tubo digestivo mais comuns na prática clínica do Gastrenterologista são os TNEs gástricos do tipo 1 e os TNEs do recto. Ambos são frequentemente assintomáticos e diagnosticados incidentalmente durante exames endoscópicos convencionais. São habitualmente tumores pequenos (<1cm) e de baixo grau, com um comportamento biológico indolente e apresentam um excelente prognóstico. Os TNEs gástricos do tipo 1 estão caracteristicamente associados a gastrite crónica atrófica e hipergastrinémia e são frequentemente multifocais. Associam-se frequentemente a metaplasia intestinal extensa, pelo que é essencial inspeccionar detalhadamente toda a mucosa gástrica, no sentido de definir potenciais lesões displásicas. O principal mal que fazem aos doentes é provocar ansiedade, pelo estigma associado ao diagnóstico de um “tumor” e associam-se frequentemente à realização (de forma errada!) de exames complementares excessivos ou até intervenções cirúrgicas causadoras de morbilidade, sem qualquer benefício clínico. Dado o seu comportamento indolente e baixo potencial de metastização, num doente com um (ou vários) TNEs gástricos do tipo 1 <1cm, não está indicado estadiamento sistémico por TC (ou RM) ou com exames baseados em análogos de somatostatina (PET-TC 68Ga DOTANOC ou Octreoscan). Mesmo o estadiamento locoregional por ecoendoscopia, está indicado apenas nos TNEs gástricos do tipo 1 peri/supra-centimétricos. Os TNEs gástricos do tipo 1, <1cm, poderão ser apenas vigiados ou ressecados endoscopicamente (e o único exame necessário será a gastroscopia). Resumindo, a conduta do endoscopista perante a suspeita de um TNE gástrico do tipo 1 deverá ser: 1. confirmar que existe gastrite crónica atrófica associada (causadora de hipergastrinémia) e dar mais atenção à mucosa adjacente do que ao próprio tumor (no sentido de despistar uma potencial lesão plana displásica associada a metaplasia intestinal); 2. tranquilizar o doente; 3. não realizar TC ou outros exames de estadiamento sistémico; 4. realizar ecoendoscopia para estadiamento locoregional apenas se tumor ≥1cm; 5. reforçar a não indicação cirúrgica de um TNE gástrico do tipo 1 <1cm (ou mesmo se >1cm na ausência de invasão da muscular própria ou metastização ganglionar); 6. Procurar ressecar endoscopicamente com eficácia (R0) um tumor peri/supracentimétrico limitado à submucosa e sem evidência de metastização ganglionar na ecoendoscopia. Os TNEs do recto, diagnosticados incidentalmente durante uma colonoscopia, são habitualmente lesões pequenas localizadas na mucosa profunda/submucosa superficial. São muitas vezes diagnosticados histologicamente após excisão endoscópica (com ansa ou com pinça) de um suposto “pólipo” rectal. O risco de invasão profunda da submucosa (e de metastização ganglionar) está intimamente associado à dimensão do tumor. No cenário comum de um pequeno TNE do recto (<1cm) bem diferenciado (G1) não estão indicados exames de estadiamento sistémico, como TC, RM ou PET-TC 68Ga DOTANOC, uma vez que não estão descritos casos de metastização à distância neste contexto. Já o estadiamento locoregional por ecoendoscopia é recomendado em todos os casos de TNE do recto >5mm, apesar do baixo risco de metastização ganglionar (~3%) no tumor <1cm. Assim, a ecoendoscopia é particularmente útil nos TNEs do recto peri/supracentimétricos (com 1-2cm), em que a decisão de ressecar endoscopicamente o tumor implica a não invasão da muscular própria e a ausência de adenopatias mesorectais potencialmente malignas.

Erros na avaliação laboratorial: solicitar doseamento de cromogranina A (e outros biomarcadores) na avaliação de pequenos tumores neuroendócrinos do tubo digestivo

A cromogranina A é o biomarcador mais utilizado na avaliação dos TNEs, apesar da sua baixa sensibilidade (que está intimamente associada ao burden tumoral) e baixa especificidade (ocorrendo falsos positivos na presença de gastrite atrófica, no doente medicado com inibidores da bomba de protões, em qualquer doença inflamatória e na insuficiência renal). A cromogranina A é pouco útil e não está recomendada na avaliação de TNEs não metastáticos do tubo digestivo, sendo particularmente inespecífica na avaliação dos TNEs gástricos do tipo 1, em que está frequentemente elevada devido à presença de gastrite atrófica. As guidelines NANETS mais recentes não recomendam o doseamento da cromogranina A (ou de outros biomarcadores) para o diagnóstico e vigilância pós-ressecção de TNEs gastrointestinais não metastáticos. Perante o diagnóstico incidental de um TNE não funcionante (num doente assintomático) também não estão indicados doseamentos hormonais ou de seus metabolitos, como o ácido 5-hidroxi-indol-acético (5-HIAA) urinário. Estes doseamentos deverão ser apenas realizados em doentes sintomáticos, de acordo com a suspeita clínica: por exemplo, dosear 5-HIAA (na urina  de 24h) na suspeita de síndrome carcinóide, mais frequentemente associado a metastização hepática por TNE do intestino delgado.

Erros na avaliação da ressecabilidade cirúrgica: classificar como irressecável um tumor neuroendócrino com metastização hepática

Os tumores neuroendócrinos são um grupo heterogéneo de tumores, com comportamento biológico variável. O estadio da doença (determinado por exames de imagem, classificado segundo a classificação TNM da AJCC) e o grau de diferenciação/índice proliferativo (determinado histologicamente, classificado segundo a classificação da OMS) constituem os dois principais factores de prognóstico. Na prática clínica, a maioria dos TNEs são tumores bem diferenciados G1 (de baixo grau) ou G2 (de grau intermédio), que caracteristicamente apresentam um comportamento biológico indolente, mesmo quando diagnosticados numa fase metastática. Perante o comportamento indolente dos TNEs de baixo grau, a estratégia terapêutica deverá incluir a ressecção de todos os focos de doença (incluindo o tumor primário e suas metástases), desde que sejam cirurgicamente ressecáveis num doente “fit for surgery”. Esta estratégia não é válida para os TNEs de alto grau (G3 e carcinomas neuroendócrinos), que apresentam um comportamento biológico agressivo, com elevada taxa de recidiva pós-operatória mesmo quando localizados.

Erros na selecção da técnica de ressecção dos TNEs do tubo digestivo

Relativamente à técnica de ressecção endoscópica dos TNEs, apenas é lícito ressecar com pinça de biopsia ou com ansa sem injecção (por técnica de polipectomia convencional) um TNE gástrico do tipo 1 diminuto (neste caso, como alternativa à vigilância preconizada nas guidelines internacionais). Em todos os restantes contextos, as técnicas de ressecção endoscópica com pinça ou com ansa (sem injecção) apresentam elevadas taxas de ressecção incompleta e deverão ser evitadas. Nos cenários mais comuns dos TNEs gástricos do tipo 1 e dos TNEs do recto, deverão ser considerados os seguintes pontos:

  1. Na esmagadora maioria dos TNEs do tipo 1 (G1-G2, ≤15mm), a técnica de mucosectomia convencional (EMR: lift and cut com ansa diatérmica) é adequada, apresentando baixa taxa de recorrência tumoral. Nos tumores >15mm, a técnica de dissecção da submucosa (ESD) poderá ser uma melhor opção, com maior taxa de ressecção completa em bloco, permitindo um estadiamento histológico adequado. A indicação para cirurgia num TNE gástrico do tipo 1 é excepcional, estando indicada na presença de invasão da muscular própria ou metastização ganglionar (preferencialmente documentada por biopsia guiada por ecoendoscopia).
  2. Nos TNEs do recto, a técnica de mucosectomia com ansa deverá ser reservada a tumores diminutos (≤5mm), apresentando as técnicas de mucosectomia modificada (assistida por cap ou laqueação) ou ESD/técnica híbrida, maiores taxas de ressecção completa em tumores de maior dimensão (até 2cm, desde que G1, limitados à submucosa e sem adenopatias malignas na avaliação por EUS-FNB). Todos os TNEs do recto ≥2cm (mesmo de baixo grau) deverão ser referenciados para ressecção cirúrgica oncológica (com linfadenectomia), uma vez que a maioria (~60%) apresentará metástases ganglionares. Na verdade, a cirurgia deverá ser equacionada num TNE do recto ≥15mm, em particular num doente jovem, pelo risco de micrometástases ganglionares não identificáveis na ecoendoscopia, presentes em cerca de 15% dos tumores com 15-20mm.
  3. Não ressecar com ansa uma lesão suspeita de TNE ≥1cm que não esteja adequadamente caracterizada, incluindo o grau histológico (avaliado por biopsia) e o estadiamento locoregional por ecoendoscopia.
  4. A documentação de “margem positiva” na peça de ressecção endoscópica de um TNE de baixo-grau não significa falência da técnica, uma vez que a maioria destes tumores não apresentará recorrência no período de seguimento. Estes doentes deverão ser apenas vigiados.

Referências

 

  1. Delle Fave G, O’Toole D, Sundin A, Taal B, Ferolla P, Ramage JK, et al. ENETS Consensus Guidelines Update for Gastroduodenal Neuroendocrine Neoplasms. Neuroendocrinology 2016; 103(2):119-24.
  2. Ramage JK, De Herder WW, Delle Fave G, Ferolla P, Ferone D, Ito T, et al. ENETS Consensus Guidelines Update for Colorectal Neuroendocrine Neoplasms. Neuroendocrinology 2016; 103(2):139-43.
  3. Caplin M, Sundin A, Nillson O, Baum RP, Klose KJ, Kelestimur F, et al. ENETS Consensus Guidelines for the management of patients with digestive neuroendocrine neoplasms: colorectal neuroendocrine neoplasms. Neuroendocrinology 2012; 95(2):88-97.
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  6. National Comprehensive Cancer Network (NCCN). NCCN clinical pratice guidelines in oncolology. Available at: https://www.nccn.org/professionals/physician_gls (accessed on June 30, 2023).
  7. Oberg K, Couvelard A, Delle Fave G, Gross D, Grossman A, Jensen RT, et al. ENETS Consensus Guidelines for Standard of Care in Neuroendocrine Tumours: Biochemical Markers. Neuroendocrinology 2017; 105(3):201-211.
  8. Carvão J, Dinis-Ribeiro M, Pimentel-Nunes P, Libânio D. Neuroendocrine Tumors of the Gastrointestinal Tract: A Focused Review and Practical Approach for Gastroenterologists. GE Port J Gastroenterol 2021; 28(5):336-348.