Pesquisa

Inteligência Artificial em Gastrenterologia: Qual o impacto na prática clínica?

No passado dia 19 de março de 2022 decorreu em Lisboa a Reunião Monotemática da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia que foi sobre o tema «Inteligência Artificial em Gastrenterologia».


A escolha deste tema prende-se com o facto da Inteligência Artificial (IA) estar em franco desenvolvimento e ir seguramente mudar a prática médica em muitas áreas nomeadamente na Gastrenterologia. A área em que a IA demonstrou até à data a sua maior utilidade é na área da endoscopia digestiva nomeadamente na deteção e caracterização dos pólipos do colon. Assim, está já largamente demonstrado que os programas de rastreio para diagnóstico precoce do cancro do cólon e do reto, dependem da taxa de deteção de adenomas que são lesões pré-malignas do colon. Nos últimos anos foram desenvolvidos vários softwares que permitem detetar estas lesões precursoras, muitas vezes diminutas, com maior acuidade do que o olho humano. Em relação às lesões pré-malignas do tubo digestivo alto (esófago e estômago) estes programas ainda estão em desenvolvimento com a participação ativa de centros portugueses, nomeadamente do IPO Porto. Existem igualmente outras áreas nomeadamente a enteroscopia por cápsula ou a colangioscopia (i.e., a visualização do interior da árvore biliar) em que a IA vai trazer grandes avanços. Estes avanços traduzem-se não só numa maior acuidade para detetar e caracterizar o tipo de alterações encontradas, nomeadamente, diferenciar entre lesões malignas ou benignas, mas também na maior rapidez de execução do exame. Uma enteroscopia por cápsula demora em média 4 horas a ler. Admite-se que com esta nova tecnologia este tempo será reduzido para menos de 30 minutos. Assim, a utilização da IA na endoscopia digestiva vai permitir aproveitar melhor os recursos humanos disponíveis – se há alguns anos havia o receio destas novas tecnologias irem «substituir» o médico, hoje estes receios já não existem e a maioria dos gastrenterologistas reconhece já o enorme auxílio que a IA constitui em múltiplas áreas da Gastrenterologia.


Durante esta reunião foram também abordadas as fases de desenvolvimento destas tecnologias. Assim, há uns meros 5 anos a IA era formada a partir do registo de inúmeras imagens, que eram tratadas, digitalizadas e em que depois o computador aprendia a reconhecer determinados padrões e a fazer «diagnósticos». Daqui passámos para o chamado machine learning e hoje estamos na fase do deep learning – nesta fase já existem redes convolucionais complexas em que o computador já não precisa de ser «alimentado» com os nossos registos, com as nossas imagens. Nesta fase do deep learning o computador já se assemelha a um cérebro humano, já «pensa», já «decide», só que com muito maior eficácia e rapidez do que o cérebro humano. Outra área em que o deep learning tem trazido grandes avanços é a área da radiologia nomeadamente na ressonância magnética em que conseguimos imagens com muito maior definição e diagnósticos com muito maior precisão e, sobretudo, em 1/3 ou 1/ 4 do tempo de ocupação do equipamento.


Ainda no campo do tratamento das imagens houve também uma conferência em que se demonstrou a utilidade da IA na leitura e nos diagnósticos de anatomia patológica. A área desenvolvida até agora é sobretudo dos pólipos do colon mas outras áreas se seguirão em que para além da maior precisão temos também a maior rapidez na leitura. Atendendo a que é uma área em franca expansão, a patologia molecular, em que cada vez mais uma única lâmina de histologia sofre vários tratamentos, várias colorações especiais para diagnósticos moleculares cada vez mais precisos, é de prever que os benefícios trazidos pela IA sejam também significativos.


Saindo um pouco da área da «Imagem», endoscópica, radiológica ou histológica, foram abordadas outras áreas igualmente interessantes. Uma delas, especificamente ligada à Doença Inflamatória do Intestino (DII), diz respeito aos algoritmos de decisão – diagnósticos e terapêuticos. Felizmente para todos, que cada vez existem mais opções terapêuticas, mais estudos publicados com uma quantidade de informação dificilmente «incorporada» pelo cérebro humano de forma a ser utilizada em decisões clínicas do dia-a-dia. Se a experiência clínica é fundamental, seria também importante os clínicos disporem de algoritmos de decisão que entrassem em linha de conta com características do doente (p.e. polimorfismos, fatores genéticos), da doença (extensão, fenótipo), da resposta a fármacos prévios, de fatores de risco para efeitos tóxicos ou adversos da medicação, e que todas estas variáveis em conjunto entrassem nas decisões ou opções terapêuticas, discutidas entre médicos e doentes. É isto que se pretende com os algoritmos em desenvolvimento. Ainda na área das DII foram também abordadas as clínicas virtuais. Todos sabemos que os doentes com DII são, regra geral, doentes jovens com vida profissional ativa em que a vinda ao Hospital para consultas, para exames, para vir buscar medicação, impacta de forma significativa a sua qualidade de vida que infelizmente já é subótima em muitos casos. Assim, se existissem apps em que os doentes colocavam os dados de análises, exames realizados bem como sintomas ou queixas recentes, em que os clínicos tivessem acesso a essa informação e através das quais podiam comunicar entre si, isso representaria seguramente um melhor aproveitamento dos recursos, uma melhor comunicação, com «poupança de tempo» de doentes e profissionais, sobretudo para os doentes que se apresentem em remissão. Outras apps podem ser utilizadas pelos doentes para os ajudar a decidir que consultas devem marcar e qual o grau de urgência com que o devem fazer, a partir do registo das queixas que apresentam. A vantagem deste tipo de funcionalidade é óbvia quando falamos em diagnóstico precoce de DII em que sabemos que quanto mais precoce for o diagnóstico, mais precoce é iniciado o tratamento e melhores podem ser os resultados.


Estes foram alguns dos temas abordados nesta reunião. De realçar que, quando pedimos a alguns Gastrenterologistas da nossa Sociedade para sintetizar numa frase qual o impacto da IA para a prática da Gastrenterologia atual, a maioria salientou o enorme avanço que isso representa. A maioria considera que «O Futuro já chegou», na medida em que, já no presente e de maneira mais ou menos óbvia, todos os gastrenterologistas modernos já usam estas novas tecnologias na sua prática clínica. Muitos salientaram os benefícios trazidos por deixarem de estar «sozinhos» nas decisões médicas tomadas. Todos reconhecem a grande poupança de tempo que a IA traz – tempo esse que todos sabemos que é escasso e que pode ser aproveitado para outras atividades.


É óbvio que nos tempos mais próximos a IA vai entrar em força na área médica, possibilitando maior acuidade no diagnóstico e tratamento de diversas patologias.


Marília Cravo,
Vice-Presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia Professor Associada da Faculdade de Medicina de Lisboa Diretora do Serviço de Gastrenterologia do Hospital da Luz Lisboa
Fonte: ADPI